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“Você estava acenando esses dias pela janela do nosso quintal mas não entendi quem era, então hoje resolvi vim ver” – disse Ana, pela primeira vez no meu jardim da frente da casa. 

 

Olá! sou seu novo vizinho! nos casamos faz pouco tempo e acabamos de nos mudar pra essa casa e não tinha certeza se você estava me cumprimentando naquele dia pela janela ou se estava fazendo outra coisa. Em todo caso acenei porque não enxergo bem à distância e ainda estou aprendendo os nomes dos vizinhos – Eu disse. 

 

“Que legal! sou italiana, mas mudei pra esse país fazem muitos anos. Meu marido é inglês e moramos aqui já faz vários anos. Seja bem vindo!”

 

Que legal! também sou italiano! peró non parlo italiano molto bene. E continuei falando em inglês com ela.

 

Ana já era bem idosinha, e às vezes não dava pra entender muito o que ela falava em inglês. Mas a simpatia era nítida. Tipicamente de nonas italianas. Diretas mas muito gentis.  

 

“Você gosta de pasta? qualquer dia desses poderiam vir jantar com a gente e eu posso fazer uma pasta” – disse Ana

 

Claro! respondi. Adoro pasta (macarrão de qualquer tipo). Mas naturalmente não levei o convite muito a sério, haja vista que havia acabado de me mudar e não é muito costumeiro pessoas te chamarem pra jantar na casa delas, mesmo que sendo vizinhas, acabando de conhecer. 

 

Desde então, de vez em quando via a Ana pela minha janela cuidando do jardim dos fundos de sua casa. Ou cuidando do seu pé de tomate, feito o pequeno príncipe cuidando da rosa dele. Casas do interior da Inglaterra não tem muitos muros ou cercas. Apesar de ela morar duas casas abaixo da minha, nos víamos com frequência à distância. Raramente via seu marido no quintal. 

 

Apesar disso, quando encontrava Ana nas redondezas e resolvia cumprimentá-la, ela não parecia me reconhecer. Devido a senioridade dela e eu ter convivido com um avô com Alzheimer anos antes, suspeitei que poderia ser algo do tipo, mas mantive minhas suspeitas pra mim mesmo. 

 

Não pensava muito sobre o assunto até que um dia, uma outra vizinha me confirmou que de fato Ana tinha algum tipo de o que eles chamam aqui de demência

 

Não sou médico, muito menos habilitado para diagnosticar qualquer coisa ligada à saúde física ou mental de ninguém. Mas a confirmação da doença da Ana, me foi contado por essa vizinha que a conhece há diversos anos fez todo sentido. 

 

Desde então, quando via Ana pela rua, mantinha os cumprimentos. Às vezes ela me respondia. Outras vezes fazia aquela cara de que não fazia ideia de quem eu era. E era assim, sempre, por quase três anos.

 

Engraçado observar que por diversas vezes eu sentia o cheiro de algo queimando e fumaça, e saia preocupado pra olhar se não era a casa da Ana pegando fogo. Felizmente nunca foi o caso. Era só a Ana queimando lixo no final das tardezinhas. 

 

Mais engraçado ainda que eu achava que isso era apenas um costume de pessoas da fazenda ou coisa do interior de onde cresci. Não esperava  uma senhora italiana morando na Inglaterra queimando lixo religiosamente durante a tarde. 

 

Diversas vezes via a Ana passando na frente do meu jardim da frente quando ela ia ao supermercado. Sempre sozinha. Quase sempre com seu chapeuzinho, vestida de saia e roupas características de nonna italiana. Acompanhada de um carrinho de compras. Postura com a coluna levemente encurvada para frente. Parecendo muito aquelas idosinhas características de desenho animado. 

 

Hoje recebi a notícia que Ana faleceu ontem a noite. Ana se foi exatamente um mês após seu marido falecer. 

 

“Você sabia que a Ana faleceu? O marido dela faleceu há exatos um mês e ela ficava esquecendo disso. Então ela me contou inúmeras vezes sobre o fato nesse último mês. Até que ontem, ouvi um barulho, corri pra ver, chamei ambulância e polícia e a Ana se foi”  – O vizinho entre a casa minha e a dela me contou hoje quando eu chegava em casa.

 

Fiquei pensando em quanto foi triste pra Ana esse um mês de ter que ouvir repetidas vezes que seu marido de muitos anos havia falecido. Repetidas vezes, pois a demência a fazia esquecer do fato. Mais triste ainda comunicar o fato inúmeras vezes aos conhecidos.  

 

Apesar das duas tristezas de saber que Ana e seu marido se foram. De ver as luzes todas apagadas e a sua casa vazia. Perguntei um pouco mais da vida da Ana pra esse vizinho que a conhecia por muitos anos. 

 

Ele me disse que Ana e seu marido tiveram uma vida longa e feliz. Ambos se foram com mais de noventa anos de idade. Tiveram filhos e uma boa vida. 

 

Sentindo uma sensação de perda e tristeza, respondi pro meu vizinho que é isso que podemos esperar dessa vida. E acredito que é isso que podemos realmente pedir e esperar: uma vida longa e feliz. 

 

Nosso jantar com a pasta nunca aconteceu. Não mais sentirei o cheiro de fumaça e sairei correndo pra perceber que é você queimando coisas no quintal. Nem ficarei aflito de ver você se apoiando na casinha de ferramentas caindo aos pedaços do seu quintal e achando que ela desmontaria sobre você a qualquer segundo. Nem ainda te verei passando da minha janela pra fazer compras toda admirável. 

 

Não fomos amigos próximos. Mas ter a Ana como vizinha fez parte da minha vida de uma certa forma. Parte do cenário dessa cidadezinha do interior da Inglaterra que tanto prezo. E fico feliz em saber que sua vida foi longa e feliz. 

 

Vá em paz Ana. Também o marido da Ana que eu nunca soube o nome.